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O rugby paraense na Belém da Borracha, devolvido há dez anos pelo Acemira


A respeito do Acemira, o Portal do Rugby já o classificou como “o clube que devolveu o rugby ao Pará”. Os Kaluanãs nunca renegaram as tentativas prévias de difusão da modalidade rugby league em Capitão Poço nos anos 2000 e do formato rugby union na UFPA pelo Rugby Açu nos anos 90. Mas, no dia de dez anos oficiais, vale destacar que o pioneirismo da ovalada em Belém e no Pará data desde a Era da Borracha.


No século XIX, football ainda poderia designar não apenas o esporte futuramente regido pela FIFA (fundada apenas em 1904) como também o rugby e diversas outras recreações boleiras no Reino Unido e suas colônias e comunidades ultramarinas. Muitos dos clubes de rugby mais antigos do mundo ainda se denominam como Football Clubs, como o próprio Barbarians, além do Leicester Tigers, do Saracens (ambos campeões europeus no século XXI), do atual campeão inglês Harlequins e do Blackheath – estes dois, fundadores tanto da federação inglesa de futebol como da de rugby.

Isso também se deu na América do Sul, com o pioneiro Buenos Aires Football Club surgindo em 1867, ainda antes da distinção oficial entre as regras do Association Football (o “futebol da Associação”, criada em 1863 por equipes londrinas interessadas em regras unificadas aos diversos footballs) e do Rugby Football – cujo órgão regulador correspondente só seria formalizado em 1871; ele teve como fundadores diversos outros FCs (em especial, o Richmond) junto aos "rebeldes" Harlequins e Blackheath, o time que abrira uma primeira divergência na uniformização de regras buscada pela dita Associação.


O Buenos Aires FC, por sua vez, ainda competiu no primeiro campeonato argentino de futebol, em 1891, mas já naquela época preferia as regras disseminadas pela cidade de Rugby. E focou-se de vez desde então na bola oval, sendo um dos membros fundadores da liga portenha desse esporte, em 1899 – e um clube ainda ativo no cenário rugbier argentino, ainda que atualmente use o nome Buenos Aires Cricket & Rugby Club. No Brasil, tem-se o exemplo clássico do SPAC, onde jogava Charles Miller, como clube de futebol (embora formalmente um Athletic Club) datado do século XIX que veio a voltar-se ao rugby. Já o primeiro time do país dedicado exclusivamente à ovalada, fundado em 1891, chamou-se justamente Clube Brasileiro de Football Rugby.


Com esse significado abrangente de football, não era incomum naqueles primórdios usar-se apenas a palavra Association para referir-se estritamente ao futebol, como ocorreria no registro jornalístico do primeiro clássico entre Remo e Paysandu. Foi exatamente para simplificar esse uso que a comprida expressão Association foi ainda na Grã-Bretanha abreviada para o termo Soccer (inicialmente, Soccer Football), a se tornar sinônimo de futebol em nações nas quais terminou mais popular algum outro modo de football, como o americano, o australiano, o gaélico (irlandês)... ou o próprio rugby: é do País de Gales, afinal, que vem Nigel Owens, o árbitro que imortalizou a reprimenda "this is not soccer".


Esses desdobramentos paralelos já permitiriam concluir a grande probabilidade de também a Belém do século XIX ter sido cenário da prática de rugby “camuflada” como football nos registros da época.


Em seu livro sobre o centenário do campeonato paraense de futebol (Parazão Centenário, de 2012), o historiador esportivo Ferreira da Costa inseriu capítulos prévios entre as páginas 13 e 15 onde inclusive sugere que Belém foi um berço do football brasileiro; ele menciona tese já suscitada nos anos 90 pelo cronista Júlio Lynch e registros levantados pelo historiador Loris Baena Cunha de uma partida em 1890 entre funcionários da Amazon Steam Navigation Company Ltd, da Parah Gaz Company e da Western Telegraph (todas empresas vitorianas atraídas pelo ciclo borracheiro, que fazia de Belém a terceira cidade mais influente do Brasil), cinco anos antes daquela que é considerada oficialmente a primeira partida no país – entre funcionários da São Paulo Railway e da São Paulo Gaz Company. Eis outros trechos da teoria divergente naquele livro de Ferreira da Costa:


“Lynch (...) chamava a atenção para o fato de que os ingleses tiveram grande influência no Pará a partir de 1850, com a Amazon Steam Navigation Company Ltd. Depois, vieram outras companhias se instalar em Belém, como a Parah Gaz Company e a Western Telegraph. Posteriormente, passaram a dominar, também, a construção e administração do porto de Belém, os bondes, a energia elétrica e os telefones. (...) As famílias paraenses mais abastadas mandavam seus filhos para estudar na Inglaterra, França e Suíça, pois a Booth Line mantinha ligação com o porto de Liverpool, com a saída diária de um navio para fazer esse trajeto internacional. (...) Como os ingleses chegaram a Belém a partir de 1850, é bem provável que (...) tenham sido os ‘professores’ da arte de jogar bola junto aos paraenses”.

Estande sobre a agência belenense do London & Brazilian Bank Ltd na exposição Viva Belém, em 2020. Clique para ampliar

 

A palavra “bonde”, inclusive, teria se disseminado no Brasil a partir de um James Bond mesmo. Muito antes da criação do personagem 007, esse era o nome do cônsul dos EUA em Belém. A empresa dele construiu ainda em 1869 na capital paraense uma das primeiras linhas de bonde do Brasil, depois utilizada a partir de 1907 pelo primeiro bonde elétrico – este, de “autoria” de uma outra empresa britânica mesmo, a Pará Electric Railways & Lightning Co. Trata-se de informação destacada na exposição “Viva Belém”, que em janeiro de 2020 retratou a Belém da Belle Époque em estandes no Shopping Castanheira, pelos 404 anos da cidade.


Outro dado daquela exposição relembrou que uma das instituições bancárias mais importantes localmente daquele tempo foi o London & Brazilian Bank Ltd, com agência aberta em Belém em 1874, situada na esquina da rua 15 de Novembro com a travessa Campos Sales. Segundo a exposição, ele promovia até mesmo circulação corriqueira da libra esterlina para pagamento de seringalistas. Contexto que atraiu também certa família já radicada no Brasil havia duas gerações: filho de um dos 15 filhos brasileiros de um escocês chamado George Gracie, Gastão estabeleceu-se em Belém após morar em diversas cidades brasileiras e na Alemanha. Nos primeiros anos do século XX, já no final do ciclo borracheiro, nasceram na "Paris n'América" os mais ilustres dos nove filhos de Gastão Gracie: os irmãos Carlos e Hélio, futuros patriarcas do famoso clã de lutadores. Os dois, ainda no Pará, aprenderam o jiu-jitsu que viriam a adaptar e difundir pelo mundo após se mudarem em 1920 ao Rio de Janeiro.


Em longa entrevista ao Portal do Rugby, Ian Turnbull, ex-jogador da seleção brasileira e cujo pai também imigrara da Escócia (para Niterói, nos anos 20 do século XX), relatou sobre os pioneiros do rugby carioca que “o rugby passou a ser jogado regularmente com o surgimento de diversos times, principalmente de empresas britânicas. Era comum um banco solicitar à matriz o envio de um contador que jogasse rugby como fullback, por exemplo”. É possível que prática semelhante tenha sido empregada também em Belém. Fato é que a citada empresa naval Booth Line (em cujas instalações, onde hoje é a Avenida Presidente Vargas, funcionou a primeira sede do Pará Clube, fundado em 1903 por trabalhadores dela e de outras firmas britânicas) tinha um rugbier em cargo de gerente – é o que se confirma em uma pesquisa simples por "rugby" no arquivo paraense disponível na hemeroteca virtual da Biblioteca Nacional.


Embora o acervo paraense digitalizado pela Biblioteca Nacional ainda esteja infelizmente esparso, foi possível encontrar um precioso resultado para o ano de 1916, quando os resquícios da já moribunda Era da Borracha ainda eram frescos. Trata-se de registro do extinto jornal Estado do Pará, de propriedade da família Chermont, na quinta página da edição publicada em 20 de janeiro do ano que marcou o terceiro centenário de Belém.


Adaptando o texto para a ortografia atual da língua portuguesa e preservando o uso de palavras inglesas no original (com itálicos nossos e também adaptando suas ortografias), a íntegra da nota (já devidamente acrescida como fonte do verbete do Acemira no Wikipédia) é esta:


“FOOTBALL, RUGBY. Sabemos que estão em via de organização dois teams de football ‘rugby’, que dentro de pouco tempo e sob os auspícios da Liga Paraense de Football realizarão um match de rugby no campo da Liga. Será o primeiro match desse gênero a efetuar-se no Pará e é de esperar que a concorrência seja enorme nesse dia ao campo de football, tanto mais quanto o produto das entradas reverterá em benefício da Maternidade, a cargo da Santa Casa de Misericórdia. É desejo dos promotores desse altruístico festival esportivo conseguir a formação de um team inglês e outro brasileiro, mas, se isto não for possível, os dois teams serão formados indistintamente com os elementos que desejarem concorrer para a organização dos mesmos. Essa tentativa será tanto mais interessante quando sabemos que antigos players de rugby, definitivamente afastados da atividade esportiva, excepcionalmente emprestarão o seu concurso, tratando-se como se trata de uma obra de caridade. Desde já, podemos citar alguns nomes, parecendo certo que o Dr. Guilherme Paiva, valoroso rugbyman, capitaneará um dos teams, não sendo para estranhar que o Sr. Jansen, digno gerente da Companhia Booth e antigo internacional inglês, chefie o outro team. Além destes, os Srs. Drs. Abel Chermont, Aimé Feio, Edgar Chermont, Russel, Romariz e outros, também tomarão parte nesse interessante match. Todos aqueles que desejarem concorrer para a formação dos teams poderão mandar os seus nomes ao Dr. Abel Chermont (rua João Alfredo n. 51), que ficou incumbido de registra-los, mencionando as posições em que estão habituados a jogar. Conforme convocação publicada, realiza-se hoje a 2ª sessão da Liga, devendo ser empossados os membros da mesa escolhidos para o ano social de 1916 e eleitas as diversas comissões. Pede-se o comparecimento de todos os diretores eleitos. CARPENTIER”.

O registro de rugby em Belém na edição de 20-01-1916 do jornal Estado do Pará. A nota consta na coluna mais à esquerda do centro. Clique para ampliar

 

A regulação do football no Pará tinha àquela altura acabado de completar nove anos; um primeiro órgão fora fundado em 5 de dezembro de 1906 por uma comissão composta por um presidente chamado C.H. Lloyd, um Alberto Teambridge como secretário e um Sydney Fall (nome de um dos primeiros presidentes do Pará Clube) de tesoureiro, dentre outros diretores; tinha no Pará Football Club uma equipe composta apenas por britânicos e inclusive seu campeonato inicial seguiu calendário ao estilo europeu, iniciando a competição ainda em 1906 para termina-la em meados de 1907. São todos dados daquele prólogo do livro Parazão Centenário, a explicar que o certame inaugural acabaria suspenso em junho de 1907, sem um campeão oficial. O primeiro estadual a terminar oficializado seria mesmo o de 1908. A influência britânica na Belém da Borracha, de todo modo, fez do paraense o quarto estadual mais antigo do Brasil.


A hemeroteca virtual da Biblioteca Nacional, por sua vez, permite notar que em 1916 o presidente da Liga Paraense de Football era o citado Abel Chermont, que conciliava o cargo com a advocacia em sociedade com o irmão Edgar, a presidência da seguradora Lloyd Paraense e carreira política: era o então cônsul em Belém de uma Bélgica em plena guerra mundial e esteve no levante militar que, naquele ano, depôs o governador Eneias Martins para a ascensão de Lauro Sodré – tornando-se deputado federal em 1917 e senador nos anos 30. Era um dos ditos membros da classe alta enviados para estudos na Inglaterra (no seu caso, no Dulwich College, de Londres), onde presumivelmente aprendeu os footballs. Em 2013, teve seu mandato simbolicamente restaurado pelo Senado Federal após perseguição varguista tê-lo cassado, em retaliação por denunciar excessos na repressão anticomunista.


O irmão Edgar Chermont, por sua vez, conciliava a advocacia com a atividade notarial no cartório que ainda leva o nome da família; outra obra de Ferreira da Costa, o Memorial Cruzmaltino, dedicado aos 110 anos da Tuna Luso, até o menciona na página 18 como o tabelião que lavrou a escritura da compra do primeiro terreno tunante, adquirido junto à Cúria Metropolitana (representada no ato pelo ilustre advogado de nome Samuel MacDowell). Era, aliás, na praça de nome Justo Chermont (tio de Abel e Edgar e primeiro governador paraense no Brasil República), então Largo da Nazaré, que se davam os treinos de football nos anos 90 do século XIX – segundo registros da Folha do Norte de 1896 utilizados por Ferreira da Costa naquele prólogo do Parazão Centenário.


Além de Abel Chermont, os dois footballs se interligavam em Belém também na figura do citado Aimé Feio. Segundo a hemeroteca, ele também era naqueles tempos o capitão do time de futebol do Remo (departamento que os azulinos haviam criado em 1913, sendo Aimé também o diretor de esportes terrestres remista). Ele até participou em 1914 do primeiro clássico com o recém-fundado Paysandu (que, por sinal, alinhou naquela ocasião dois ingleses, Mitchell e Matthews. Este inclusive marcou ali o primeiro gol da história bicolor, cujos primórdios também registram mais britânicos: Gilly, Burns, Rickenberg, Haynes...). Além de primeiro clássico, era também a primeira partida da história da equipe rival e, na súmula, Aimé Feio constou apenas como Aimé. Em 1918, seria eleito presidente do Tênis Clube do Pará. Há ainda registros de sua participação na Beneficente Portuguesa.


Aquele primeiro Re-Pa também teve a presença de Guilherme Paiva, como árbitro do evento histórico. O acervo da hemeroteca também resgata que ele era o diretor do Porto de Belém, da Cruz Vermelha no Pará, da empresa naval Amazon River, sócio do extinto Sport Club do Pará (um dos times fundadores do Parazão) e outro integrante do Tênis Clube – além de ter sido árbitro também do único Re-Pa que ocorreu naquele ano de 1916, precisamente um amistoso que serviu para reatar relações estremecidas que pairavam entre a dupla. Há na hemeroteca ainda registros de sua participação como árbitro longe dos gramados: numa prova de regata interna da Tuna em 1919, após ter enfrentado a perda de um filho natimorto e uma infecção de gripe espanhola; e de luta de vale-tudo em 1920 entre o Conde Koma (considerado o introdutor do judô e do jiu-jitsu no Brasil, foi o sensei daqueles patriarcas da família Gracie) e um certo Jack Murray. Guilherme Paiva, que em 1927 deu nome a um troféu amistoso para visita do Botafogo a Belém, hoje nomeia um palacete na travessa Dr. Moraes.


O primeiro Re-Pa também teve um Romariz como goleiro do Paysandu. Chermont e Jansen, por sua vez, foram outros sobrenomes constantes nos primeiros títulos estaduais do Remo, naquele período (dados constantes no Parazão Centenário); e um Jansen também foi autor do primeiro gol do time de futebol da Tuna, criado em 1915, conforme destaque dado na página 26 do Memorial Cruzmaltino. O acervo digitalizado da hemeroteca, porém, não permite ainda inferir que se tratem das pessoas identificadas naquela nota de 1916.

A hemeroteca, infelizmente, ainda também não pode confirmar a concretização da partida anunciada. Mas a informação de que aquele jogo beneficente de 1916 contaria com veteranos da ovalada corrobora fortemente a conclusão de uma condição supercentenária de prática, ainda que meramente recreativa, do rugby em Belém e no Pará. Prática e, sobretudo, filosofia que o Acemira e seus clubes irmãos – Japuaçu (2013), Lokomotiva (2014), Cabanos (2016), Yawara (2018), Mamba (2019) e os que mais surgirem – seguirão tratando de consolidar.


Por Caio Brandão

Time do primeiro jogo do Acemira, em novembro de 2011, três meses após a fundação

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