Perseverança: os uruguaios do Milagre dos Andes
Na semana passada, confirmou-se o que já era esperado por especialistas: o jogador argentino de futebol Emiliano Sala de fato não sobreviveu à queda do avião nas águas do Canal da Mancha. Se persistia a esperança de que pudesse estar náufrago em algumas das ilhas do canal, como no famoso filme de Tom Hanks, parte dela talvez viesse do Milagre dos Andes – uma história também levada ao cinema, no filme intitulado simplesmente Vivos (de 1992), sem nada mais ser necessário ao nome. A tradução respeitou o suficiente laconismo do nome original, Alive.
Perseverança é um valor não escrito no rugby, mas pode-se dizer que sempre esteve presente, ainda que diluída, em especial, na paixão (pelo jogo e pelo time), na solidariedade (sendo estoico em prol do avanço coletivo, colocando-se à mercê de um choque que abra caminho a um colega) e no respeito – valorizando alguma jogada possibilitada pelo colega estoico. O famoso acidente aéreo envolvendo o clube uruguaio Old Christians em 1972 impôs essa qualidade a níveis extremos de necessidade.
A história é conhecida mundialmente: os 17 sobreviventes precisaram consumir carne dos amigos mortos para se manterem vivos, após esgotarem todas as opções comestíveis disponíveis no aparelho – desde comida propriamente dita a creme dental e gel capilar, conforme o relato do sobrevivente Gustavo Zerbino. Além de não haver comida adequada, não havia também vestuário adequado à neve. Com o aparelho de rádio ainda funcionando para recebimento de notícias, souberam com dez dias que as buscas por todos haviam se encerrado.
A situação chegou depois ao ponto de que a igual falta de equipamentos adequados de alpinismo não foi impedimento para outro ato de desespero: Fernando Parrado (que perdera a mãe e a irmã no acidente), Roberto Canessa e Antonio Vizintín se arriscaram montanhas adentro buscando contato com alguma civilização que resgatasse os demais. No percurso de 61 Km percorrido em dez dias, Vizintín não aguentou e precisou retornar. Parrado e Canessa tiveram êxito e o resgate ocorreu setenta dias após o acidente, nas vésperas do natal de 1972.
O que é menos conhecido fora do Uruguai é o que a perseverança de alguns sobreviventes não terminou com a sobrevivência. Ao menos três nomes citados no texto não só retomaram as atividades no rugby como defenderam a seleção uruguaia após o acidente, inclusive simultaneamente: Zerbino, Vizintín e Canessa estiveram juntos pelos Teros no Sul-Americano de 1977. A imagem acima mostra Zerbino em 1975 (segurando a bola) e Vizintín em 1976 pelo Uruguai.
O ponta Canessa, inclusive, seria convocado também pela seleção da América do Sul, na primeira convocação dos chamados Jaguares, em 1980. Ele já defendia a seleção antes do acidente e chegou a tentar eleger-se presidente do Uruguai nos anos 90. Abaixo, uma imagem que contém os três em 1977. Canessa é o primeiro agachado, enquanto Zerbino (de barba) e Vizintín estão juntos como primeiros jogadores em pé.
O pilar Vizintín, por sua vez, passaria por outra tragédia particular. Seu site oficial conta que, após sobreviver aos Andes, tornou-se em pouco tempo viúvo. Traumas aparentemente arejados pelo rugby, pois ele esteve presente no título do Uruguai no Sul-Americano de 1981. Foi o único campeonato não vencido pela Argentina (que não disputou aquela edição, ocupada com amistosos contra a Inglaterra) nas primeiras 35 edições do torneio. É possível, na foto mais abaixo notar o sorriso em seu rosto mesmo com a resolução rudimentar da imagem.
O sobrenome Zerbino, por sua vez, ficou mais marcado na seleção por intermédio de Jorge (não envolvido no acidente aéreo) e não Gustavo – Jorge Zerbino acompanhou Vizintín no título de 1981, assim como Diego Ormaechea, o único campeão ali que estenderia a carreira a tempo de também jogar uma Copa do Mundo. Foi na edição de 1999, a primeira a contar com os uruguaios; tendo 40 anos àquela altura, Ormaechea segue como mais velho jogador, mais velho capitão e mais velho a marcar try no mundial, possivelmente após lições de perseverança apenas com o exemplo de Vizintín.
Mas foi Gustavo Zerbino quem voltou às mesmas montanhas para jogar rugby, em história registrada de modo belíssimo pelo Fantástico em 2011 (em que Vizintín foi legendado como "Vicentim"), captada de modo especial pela fotografia de Ari Junior – que, em terrível coincidência, foi um dos profissionais de imprensa falecidos no acidente da Chapecoense, em 2016. Sem intenção de romantizar esse tipo de superação, não há como tirar da reportagem lições de perseverança para cada dificuldade que o rugby, e a vida, apresentarem.
As fotos, por sua vez, são do livro Todos Somos Teros. Que Emiliano Sala, Ricardo Boechat, seus pilotos e os jovens do Flamengo possam descansar - e seus entes consigam logo alguma sustentação emocional.